NENHUM HOMEM É UMA ILHA
O título desse artigo foi tirado da famosa meditação do renomado poeta inglês do século XVII, John Donne. Um homem profundamente religioso e freqüentemente chamado de fundador dos Poetas Metafísicos, Donne escreveu uma série de orações chamadas de Devoções em Ocasiões Emergentes. Elas vieram durante seus últimos anos, quando ele estava seriamente doente, e refletem uma percepção espiritual da unicidade essencial da vida. As palavras inspiradoras de Donne vão ao cerne da mensagem de Jesus em Um Curso em Milagres, e eu devo citar trechos da sua inspirada devoção dezessete em duas partes.
I. “Por quem os sinos dobram”: A Unicidade do Filho de Deus
Nenhum homem é uma ilha, inteira em si mesma; cada homem é uma parte do continente, uma parte do principal. Se um torrão de terra fosse levado pelo mar, a Europa seria menor, da mesma forma que aconteceria em relação a um promontório, e é da mesma forma com qualquer um dos teus amigos ou contigo mesmo: a morte de qualquer homem me diminui, porque estou envolvido na humanidade e, portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram, pois eles dobram por ti (Devoções em Ocasiões Emergentes, nº 17).
Donne fala da unicidade inerente da humanidade, a qual para ele, um cristão devoto, era a criação de Deus. Enquanto nós, como estudantes do Um Curso em Milagres, não veríamos o homo sapiens como parte da Unicidade viva de Deus, apesar disso, podemos apreciar a visão unificada de Donne. Ainda que seja uma ilusão, o mundo fenomênico dos corpos permanece um todo unificado – ilusório com certeza, no entanto, uma projeção única do pensamento único do Filho único separado. Nós todos estamos mais do que familiarizados com o princípio central do sistema de pensamento do Curso: Idéias não deixam sua fonte. Se as idéias não deixam sua fonte, significando a mente, o mundo perceptual não pode ser nada além de uma projeção do mundo interno; especificamente, a idéia da separação não deixou sua fonte na mente, porque não poderia tê-lo feito. Dito de outra forma, podemos ver que o efeito não deixou sua causa, e, portanto, os mundos interno e externo são unificados, como vemos nessa afirmação de uma lição inicial do livro de exercícios. O contexto é como nossos pensamentos de ataque são a causa do mundo, o último sendo nada mais do que o efeito alucinatório desses pensamentos:
Cada pensamento que tens constitui algum segmento do mundo que vês... [O mundo] é incapaz de mudar, porque é meramente um efeito. Mas, de fato, há sentido em mudar os teus pensamentos sobre o mundo. Aqui estás mudando a causa… Cada uma das tuas percepções da “realidade externa” é uma representação pictórica dos teus próprios pensamentos de ataque. Cabe realmente perguntar se isso pode ser chamado de “ver”. Não seria fantasia uma palavra melhor para tal processo e alucinação um termo mais apropriado para o resultado? (LE-pI.23.1:3-4; 2:4-6; 3:2-7).
Uma vez que a separação começou com o Filho único acreditando que atacou Deus, aquele único pensamento permaneceu constante e presente através de todo o processo de fragmentação, que resultou na criação errônea do mundo perceptual da forma e diferenças, um mundo de multiplicidade que tem sido muito impressivamente bem sucedido em ocultar sua – literalmente – origem da mente única. Recordem-se dessa importante passagem no texto:
Tu que acreditas que Deus é medo, fizeste apenas uma substituição... Ela veio a ser tão partida, subdividida, e de novo dividida, vezes e mais vezes, que agora é quase impossível perceber que alguma vez foi uma só e que ainda é o que era. Esse único erro, que trouxe a verdade à ilusão, a infinidade ao tempo e a vida à morte, foi tudo o que jamais fizeste. Todo o teu mundo se baseia nele. Tudo o que vês reflete isso e cada relacionamento especial que jamais tiveste é parte disso (T-18.I.4:1,3-10).
Portanto, nós podemos ver que cada fragmento aparentemente separado – não importando sua forma, ou se é animado ou inanimado – é uma parte do Filho único que acreditou em sua mente perturbada e alucinatória que poderia ser separado. No entanto, ele permanece o que é – o Filho único de Deus, ainda que adormecido, como está refletido na exclamação de Jesus:
Como é santo o menor dos grãos de areia quando ele é reconhecido como parte do retrato completo do Filho de Deus! As formas que os pedaços quebrados parecem tomar nada significam. O todo está em cada um. E cada aspecto do Filho de Deus é exatamente o mesmo que qualquer outra parte (T-28.IV.9:4-8).
O que é o mesmo não pode ser diferente, e, portanto “cada aspecto do Filho de Deus” permanece o mesmo e permanece como um. Nós podemos, portanto, entender que não apenas o Amor total de Cristo é encontrado dentro de cada fragmento do Filho de Deus, mas também todo o ódio do ego. Apesar das miríades de diferenças que abundam em um mundo de corpos, distinguindo uma forma da outra, nós, no entanto, permanecemos unificados em nossa alucinação compartilhada de separação, assim como na memória compartilhada da verdade do Amor de Deus.
Voltando a John Donne, podemos talvez agora apreciar melhor sua visão da unidade inerente da humanidade. Que percepção tão diferente da dos nossos egos! Que percepção tão diferente da do mundo! Se nós realmente somos um, como poderíamos jamais realmente atacar? Além disso, como poderíamos justificar o ataque?
Ataque a qualquer pessoa, por qualquer razão, nos diminui, pois nós só atacamos a nós mesmos ao vermos um ser separado e individualizado que é uma imitação do glorioso Ser que Deus criou. Uma visão tão radical da nossa unidade inerente desfaz a base de quase todas as crenças do mundo: geopolíticas, econômica, religiosa, e social. Ela desfaz também a percepção do que concebemos como nossos problemas – em todos os níveis -, sem mencionar suas soluções. Se a causa do mundo é a crença na separação, então, tem que ser porque a solução para toda dor e sofrimento é encontrada não no mundo, mas na mente separada e dirigida pela culpa que primeiro concebeu o pensamento da dor e do sofrimento. As inspiradas palavras de Donne refletem essa mudança de decisão ao reconhecer nossa unicidade inerente – em dor, doença, morte e amor; uma unicidade que, por definição, desfaz a separação.
Lembrarmos dessa conexão causal entre nossos pensamentos (realmente, nosso pensamento) e o mundo desfaz a defesa primária do ego contra nossa lembrança de Deus, Cuja memória habita em nossas mentes. Por essa razão, o ego busca manter a causa e o efeito separados, colocando uma imensa brecha entre eles. Essa brecha é o mundo no macrocosmo, e nossos relacionamentos especiais no microcosmo. Iniciando-se com a separação única, o mundo do ego continuou a se separar e a se fragmentar. Na verdade, nossos corpos foram designados para perceber isso dessa forma:
O propósito de tudo o que vês é o de te mostrar o que desejas ver. A audição só traz à tua mente os sons que ela quer ouvir. Assim foi feita a especificidade (LE-pI.161.2:4-6; 3:1).
Mantendo o efeito específico (mundo) separado da causa abstrata ou não-específica (mente), o ego assegura que o Filho, agora estabelecido como sem mente, nunca possa mudar sua mente. Existe método na loucura do ego, pois ele sabe que se o Filho mudar sua mente, o ego iria inevitavelmente ser desfeito em sua fonte: a crença do Filho nele.
O Espírito Santo, por outro lado, traz o efeito de volta à causa, desfazendo dessa forma a estratégia do ego para manter a brecha. Essa é a visão que as palavras de Donne nos oferecem: ferir os outros fere a nós mesmos. E, então, da mesma forma, necessariamente, perdoando os outros perdoamos a nós mesmos. É interessante especular que se o mundo tivesse aceitado essa visão há trezentos anos, Um Curso em Milagres não teria sido necessário. Isso nos leva a outra mensagem que o grande poeta deixou para nós, como vemos nesse outro trecho das Devoções, de Donne.
II. “Recurso a Deus”: A Maneira de Reconhecer Nossa Unicidade
Se um homem carregasse um tesouro em barras de ouro, ou em uma cunha de ouro, e não tivesse cunhado nada dele em moeda corrente, seu tesouro não iria pagar suas despesas enquanto ele viajava... Outro homem pode estar doente também, e estar à morte, e essa aflição estar em suas entranhas, assim como o ouro em uma mina, e não ter utilidade para ele; mas esse sino que me fala da sua aflição, escava e usa aquele ouro para mim: se por essa consideração sobre o perigo de outro, eu levar as minhas próprias considerações à contemplação, dessa forma protegerei a mim mesmo, apresentando meu recurso ao meu Deus, que é nossa única segurança (Devoções em Ocasiões Emergentes, nº 17).
Nós temos a riqueza – o tesouro do Amor de Deus -, mas não sabemos disso. Na verdade, nós somos a riqueza, uma vez que ter e ser não podem ser distinguidos no Reino de Deus (T-4.III.9).
Nosso poeta está nos dizendo que nosso tesouro – simbolizado aqui pelo ouro – é sem valor para nós se não estiver disponível para ser usado. De forma similar, nosso tesouro real – as dádivas de amor e paz de Deus – é sem sentido se nossa consciência dele estiver bloqueada. Entretanto, a consciência da nossa união com todas as pessoas – “mas esse sino, que me fala da sua aflição, escava e usa aquele ouro para mim” – me permite lembrar de que a maneira com que vejo outra pessoa é a mesma com que vejo a mim mesmo, e essa é a forma de eu me tornar consciente das dádivas de Deus. Como Jesus nos lembra no texto, em meio a uma discussão sobre cura:
Perceber a cura do teu irmão como a tua própria é, assim, o caminho para lembrar-te de Deus. Pois esqueceste os teus irmãos com Ele e a Resposta de Deus para o teu esquecimento não é senão o caminho para a lembrança (T-12.II.2:9-12).
Portanto, meus pensamentos de ataque de separação realmente se tornam a forma de me levar de volta à lembrança da decisão na minha mente de negar a unicidade do Filho de Deus. Vendo esses pensamentos fora de mim, em outros – a culpa que eu projetei da minha mente em outros corpos -, eu agora posso vê-los em mim mesmo, dessa forma provendo outra chance de me lembrar de que, para usar as palavras de Donne, minha única segurança está em Deus, e não no especialismo; meu único recurso é a Voz de Deus, não a do ego. Através da reversão do Espírito Santo para a projeção do ego, sou capaz de reconhecer que o que vi em outro é a imagem externa do meu desejo: a imagem da separação e da culpa que eu quis que fossem verdadeiras (T-24.VII.8:10). Portanto, eu sou devolvido da insanidade dos interesses separados para a lembrança sã da minha unicidade compartilhada como o Filho único de Deus. Todas as diferenças percebidas agora desaparecem diante da luz resplandecente de Cristo, nosso verdadeiro Ser – nosso único Ser. A Lição 262, “Que eu não perceba diferenças hoje”, ora lindamente em nosso nome:
Pai, Tu tens um Filho. E, nesse dia, é para ele que eu quero olhar. Ele é a Tua única criação. Por que haveria eu de perceber mil formas naquilo que permanece uno? Por que haveria eu de dar mil nomes a ele quando um só nome é suficiente? Pois o Teu Filho tem que ter o Teu Nome, porque Tu o criaste. Que eu não o veja como um estranho para o seu Pai, nem para mim. Pois ele faz parte de mim e eu dele e nós somos parte de Ti Que és a nossa Fonte, eternamente unidos no Teu Amor, eternamente o Filho santo de Deus (LE-pII.262.1).
Somos nós que rezamos e, na verdade, somos nós que respondemos ao escolhermos a Resposta. Motivando nosso pedido e recebimento está o reconhecimento de que “deve existir uma forma melhor” de olhar para o mundo (T-2.III.3:5-6) e, ainda mais direto ao ponto, para as formas de percebermos uns aos outros. A “forma melhor” é a visão de Cristo, que abraça a Filiação como uma, sem excluir ninguém:
Entretanto, essa é uma visão que tens que compartilhar com todas as pessoas que vês, pois de outro modo, não a contemplarás. Dar essa dádiva é a forma de fazê-la tua. E Deus determinou, em benignidade amorosa, que ela fosse tua (T-31.VIII.8:7-11).
Com essa visão para nos guiar, nós caminhamos pelo mundo com uma nova compreensão que reconhece a universalidade do sofrimento e da paz, ambos presentes em nós, ambos presentes em todas as coisas vivas. E vê-los em um é vê-los em todos:
Se as pessoas se permitissem experienciar a dor dos outros, elas não seriam capazes de infligi-las: nem bombas, nem assassinatos, nem torturas, nem ataques de qualquer tipo.
Se as pessoas se permitissem lembrar de que o sino do julgamento, da mesma forma que o sino da morte de Donne, dobra por todos, e que sua culpa iria fazê-las pagarem o preço do seu ódio e vingança, da mesquinhez das suas projeções, haveria apenas paz e nenhum julgamento dos outros.
Se as pessoas reconhecessem que o ar, a água e a poluição nuclear simbolizam o fato de se importarem apenas com a satisfação da sua ganância, com a gritante negligência aos outros, e que esse egoísmo só as fere, elas iriam deixar de poluir em um instante.
Pois quem iria pilhar terras mineralmente ricas, arrancando em raiva justa – para emprestar a frase aliterativamente poderosa do texto (T-23.II.11:2) – tesouros que não são dele, se soubesse que era seu próprio tesouro de amor que estava perdendo?
Pois quem iria desejar escolher o sistema de pensamento assassino do especialismo, infligindo dor e sofrimento a outro, sabendo que era sua própria morte que estaria planejando?
Finalmente, qual governo iria desejar escolher o sistema de pensamento assassino do imperialismo, infligindo dor e sofrimento a outros, sabendo que eram suas próprias riquezas que estava pilhando?
A verdade dessas afirmações e respostas a essas questões são óbvias, uma vez que reconhecemos o valor dos interesses compartilhados, e a falta de valor dos separados. A resistência a esse reconhecimento, embora insana, é, apesar disso, inerente à nossa existência individual, na qual ter e ser são realmente separados, e precisam ser assim se formos sobreviver como entidades separadas. É nos lembretes que vêm dos John Donnes do nosso mundo que encontramos reforço para a escolha que irá finalmente nos trazer a segurança do amor do Céu e a paz da sua unicidade, alegremente aceitando o feliz fato de que estávamos errados e Deus certo. Parafraseando e acrescentando à questão do texto, podemos, portanto perguntar:
Quem, com o Amor de Deus sustentando-o, iria achar a escolha entre os milagres e o assassinato difícil de fazer? Especialmente se ele soubesse que o objeto da sua avidez era seu próprio ser, que foi por sua própria morte que o sino do egoísmo dobrou? (T-23.IV.9:8).
Entretanto, não apenas os mundos interno e externo da culpa, ódio e ganância permanecem um, assim também acontece com a paz, pois, como já vimos, nós igualmente compartilhamos a mesma mente errada e a mesma mente certa. No mundo do ser separado, não existem diferenças verdadeiras entre seus fragmentos aparentes, apesar de todas as evidências em contrário. O adorável poema de Helen Schucman gentilmente nos lembra:
A paz cobre você, a mesma fora e dentro,
em brilhante silêncio e em uma paz tão profunda
que nenhum sonho de pecado e mal pode chegar perto
da sua mente quieta.
(“Despertar em Quietude”, As Dádivas de Deus, p. 73)
O sonho do nosso ego é um de pecado e mal, primeiro vistos em nós mesmos e então, magicamente, parecendo surgir em outro, a quem nós rapidamente passamos a difamar, atacar e tentar destruir. Essa prestidigitação funcionou incrivelmente bem, porque tivemos sucesso em acreditar na mentira do mágico, de que somos criaturas separadas e independentes:
Tal é a estranha posição em que aqueles que vivem em um mundo habitado por corpos parecem estar. Cada corpo aparenta abrigar uma mente separada, um pensamento desconectado, vivendo solitário e de nenhuma forma ligado ao Pensamento pelo qual foi criado. Cada fragmento diminuto parece estar contido em si mesmo e precisar de outros para algumas coisas, mas sem ser de modo algum dependente do seu único Criador, já que necessita do todo para lhe dar. E nem tem qualquer vida à parte e por conta própria (T-18.VIII.5).
Para nos certificarmos, cada um de nós realmente é uma ilha, inteira em si mesma – se nós ouvirmos o ego. Mas, deixem-nos por um instante começarmos a questionar essa insanidade, e uma antiga porta que leva além do mundo de dor e morte se abre para a paz e a vida eternas (ET-ep.1:11). O Professor dos professores, nosso irmão mais velho, Jesus, gentilmente nos leva de volta da vida infernal de ilhas separadas para o Céu refletido da existência compartilhada e do propósito único. Junto com todos nós, ele ora para nossa Fonte, conforme nós juntos trilhamos nosso caminho para a luz da perfeita unicidade do amor:
Em alegres boas-vindas minha mão está estendida a todo irmão que queira unir-se a mim para alcançar o que está além da tentação, olhando com fixa determinação na direção da luz que brilha além em perfeita constância... E à medida em que cada um elege unir-se a mim, a canção de agradecimento da terra para o Céu cresce e os diminutos fios dispersos de melodia vêm a ser um único coro que abrange todo um mundo redimido do inferno, que dá graças a Ti... Pois nós alcançamos o lugar onde todos nós somos um e estamos em casa, onde Tu queres que estejamos (T-31.VIII.11:1-4, 7-11; 12:10-12).
(Volume 14, número 2, junho 2003) - Kenneth Wapnick, Ph.D. - Tradução: Eliane Ferreira de Oliveira
O título desse artigo foi tirado da famosa meditação do renomado poeta inglês do século XVII, John Donne. Um homem profundamente religioso e freqüentemente chamado de fundador dos Poetas Metafísicos, Donne escreveu uma série de orações chamadas de Devoções em Ocasiões Emergentes. Elas vieram durante seus últimos anos, quando ele estava seriamente doente, e refletem uma percepção espiritual da unicidade essencial da vida. As palavras inspiradoras de Donne vão ao cerne da mensagem de Jesus em Um Curso em Milagres, e eu devo citar trechos da sua inspirada devoção dezessete em duas partes.
I. “Por quem os sinos dobram”: A Unicidade do Filho de Deus
Nenhum homem é uma ilha, inteira em si mesma; cada homem é uma parte do continente, uma parte do principal. Se um torrão de terra fosse levado pelo mar, a Europa seria menor, da mesma forma que aconteceria em relação a um promontório, e é da mesma forma com qualquer um dos teus amigos ou contigo mesmo: a morte de qualquer homem me diminui, porque estou envolvido na humanidade e, portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram, pois eles dobram por ti (Devoções em Ocasiões Emergentes, nº 17).
Donne fala da unicidade inerente da humanidade, a qual para ele, um cristão devoto, era a criação de Deus. Enquanto nós, como estudantes do Um Curso em Milagres, não veríamos o homo sapiens como parte da Unicidade viva de Deus, apesar disso, podemos apreciar a visão unificada de Donne. Ainda que seja uma ilusão, o mundo fenomênico dos corpos permanece um todo unificado – ilusório com certeza, no entanto, uma projeção única do pensamento único do Filho único separado. Nós todos estamos mais do que familiarizados com o princípio central do sistema de pensamento do Curso: Idéias não deixam sua fonte. Se as idéias não deixam sua fonte, significando a mente, o mundo perceptual não pode ser nada além de uma projeção do mundo interno; especificamente, a idéia da separação não deixou sua fonte na mente, porque não poderia tê-lo feito. Dito de outra forma, podemos ver que o efeito não deixou sua causa, e, portanto, os mundos interno e externo são unificados, como vemos nessa afirmação de uma lição inicial do livro de exercícios. O contexto é como nossos pensamentos de ataque são a causa do mundo, o último sendo nada mais do que o efeito alucinatório desses pensamentos:
Cada pensamento que tens constitui algum segmento do mundo que vês... [O mundo] é incapaz de mudar, porque é meramente um efeito. Mas, de fato, há sentido em mudar os teus pensamentos sobre o mundo. Aqui estás mudando a causa… Cada uma das tuas percepções da “realidade externa” é uma representação pictórica dos teus próprios pensamentos de ataque. Cabe realmente perguntar se isso pode ser chamado de “ver”. Não seria fantasia uma palavra melhor para tal processo e alucinação um termo mais apropriado para o resultado? (LE-pI.23.1:3-4; 2:4-6; 3:2-7).
Uma vez que a separação começou com o Filho único acreditando que atacou Deus, aquele único pensamento permaneceu constante e presente através de todo o processo de fragmentação, que resultou na criação errônea do mundo perceptual da forma e diferenças, um mundo de multiplicidade que tem sido muito impressivamente bem sucedido em ocultar sua – literalmente – origem da mente única. Recordem-se dessa importante passagem no texto:
Tu que acreditas que Deus é medo, fizeste apenas uma substituição... Ela veio a ser tão partida, subdividida, e de novo dividida, vezes e mais vezes, que agora é quase impossível perceber que alguma vez foi uma só e que ainda é o que era. Esse único erro, que trouxe a verdade à ilusão, a infinidade ao tempo e a vida à morte, foi tudo o que jamais fizeste. Todo o teu mundo se baseia nele. Tudo o que vês reflete isso e cada relacionamento especial que jamais tiveste é parte disso (T-18.I.4:1,3-10).
Portanto, nós podemos ver que cada fragmento aparentemente separado – não importando sua forma, ou se é animado ou inanimado – é uma parte do Filho único que acreditou em sua mente perturbada e alucinatória que poderia ser separado. No entanto, ele permanece o que é – o Filho único de Deus, ainda que adormecido, como está refletido na exclamação de Jesus:
Como é santo o menor dos grãos de areia quando ele é reconhecido como parte do retrato completo do Filho de Deus! As formas que os pedaços quebrados parecem tomar nada significam. O todo está em cada um. E cada aspecto do Filho de Deus é exatamente o mesmo que qualquer outra parte (T-28.IV.9:4-8).
O que é o mesmo não pode ser diferente, e, portanto “cada aspecto do Filho de Deus” permanece o mesmo e permanece como um. Nós podemos, portanto, entender que não apenas o Amor total de Cristo é encontrado dentro de cada fragmento do Filho de Deus, mas também todo o ódio do ego. Apesar das miríades de diferenças que abundam em um mundo de corpos, distinguindo uma forma da outra, nós, no entanto, permanecemos unificados em nossa alucinação compartilhada de separação, assim como na memória compartilhada da verdade do Amor de Deus.
Voltando a John Donne, podemos talvez agora apreciar melhor sua visão da unidade inerente da humanidade. Que percepção tão diferente da dos nossos egos! Que percepção tão diferente da do mundo! Se nós realmente somos um, como poderíamos jamais realmente atacar? Além disso, como poderíamos justificar o ataque?
Ataque a qualquer pessoa, por qualquer razão, nos diminui, pois nós só atacamos a nós mesmos ao vermos um ser separado e individualizado que é uma imitação do glorioso Ser que Deus criou. Uma visão tão radical da nossa unidade inerente desfaz a base de quase todas as crenças do mundo: geopolíticas, econômica, religiosa, e social. Ela desfaz também a percepção do que concebemos como nossos problemas – em todos os níveis -, sem mencionar suas soluções. Se a causa do mundo é a crença na separação, então, tem que ser porque a solução para toda dor e sofrimento é encontrada não no mundo, mas na mente separada e dirigida pela culpa que primeiro concebeu o pensamento da dor e do sofrimento. As inspiradas palavras de Donne refletem essa mudança de decisão ao reconhecer nossa unicidade inerente – em dor, doença, morte e amor; uma unicidade que, por definição, desfaz a separação.
Lembrarmos dessa conexão causal entre nossos pensamentos (realmente, nosso pensamento) e o mundo desfaz a defesa primária do ego contra nossa lembrança de Deus, Cuja memória habita em nossas mentes. Por essa razão, o ego busca manter a causa e o efeito separados, colocando uma imensa brecha entre eles. Essa brecha é o mundo no macrocosmo, e nossos relacionamentos especiais no microcosmo. Iniciando-se com a separação única, o mundo do ego continuou a se separar e a se fragmentar. Na verdade, nossos corpos foram designados para perceber isso dessa forma:
O propósito de tudo o que vês é o de te mostrar o que desejas ver. A audição só traz à tua mente os sons que ela quer ouvir. Assim foi feita a especificidade (LE-pI.161.2:4-6; 3:1).
Mantendo o efeito específico (mundo) separado da causa abstrata ou não-específica (mente), o ego assegura que o Filho, agora estabelecido como sem mente, nunca possa mudar sua mente. Existe método na loucura do ego, pois ele sabe que se o Filho mudar sua mente, o ego iria inevitavelmente ser desfeito em sua fonte: a crença do Filho nele.
O Espírito Santo, por outro lado, traz o efeito de volta à causa, desfazendo dessa forma a estratégia do ego para manter a brecha. Essa é a visão que as palavras de Donne nos oferecem: ferir os outros fere a nós mesmos. E, então, da mesma forma, necessariamente, perdoando os outros perdoamos a nós mesmos. É interessante especular que se o mundo tivesse aceitado essa visão há trezentos anos, Um Curso em Milagres não teria sido necessário. Isso nos leva a outra mensagem que o grande poeta deixou para nós, como vemos nesse outro trecho das Devoções, de Donne.
II. “Recurso a Deus”: A Maneira de Reconhecer Nossa Unicidade
Se um homem carregasse um tesouro em barras de ouro, ou em uma cunha de ouro, e não tivesse cunhado nada dele em moeda corrente, seu tesouro não iria pagar suas despesas enquanto ele viajava... Outro homem pode estar doente também, e estar à morte, e essa aflição estar em suas entranhas, assim como o ouro em uma mina, e não ter utilidade para ele; mas esse sino que me fala da sua aflição, escava e usa aquele ouro para mim: se por essa consideração sobre o perigo de outro, eu levar as minhas próprias considerações à contemplação, dessa forma protegerei a mim mesmo, apresentando meu recurso ao meu Deus, que é nossa única segurança (Devoções em Ocasiões Emergentes, nº 17).
Nós temos a riqueza – o tesouro do Amor de Deus -, mas não sabemos disso. Na verdade, nós somos a riqueza, uma vez que ter e ser não podem ser distinguidos no Reino de Deus (T-4.III.9).
O tesouro de Cristo, que nós tanto temos quanto somos, tem sido, por ignorância, encoberto pelo pensamento de culpa – o tesouro do ego -, e então, encoberto uma segunda vez pelo mundo da culpa. Com tal ilusão duplamente protegida – o que o livro de exercícios chama de um escudo duplo de esquecimento (LE-pI.136.5:2) – nossa decisão pelo ego está protegida, aparentemente para sempre, de qualquer possibilidade de correção. Mas Donne mostra o caminho, antecipando a discussão do Um Curso em Milagres sobre o perdão como o meio de desfazer nossa tomada de decisão faltosa.
Nosso poeta está nos dizendo que nosso tesouro – simbolizado aqui pelo ouro – é sem valor para nós se não estiver disponível para ser usado. De forma similar, nosso tesouro real – as dádivas de amor e paz de Deus – é sem sentido se nossa consciência dele estiver bloqueada. Entretanto, a consciência da nossa união com todas as pessoas – “mas esse sino, que me fala da sua aflição, escava e usa aquele ouro para mim” – me permite lembrar de que a maneira com que vejo outra pessoa é a mesma com que vejo a mim mesmo, e essa é a forma de eu me tornar consciente das dádivas de Deus. Como Jesus nos lembra no texto, em meio a uma discussão sobre cura:
Perceber a cura do teu irmão como a tua própria é, assim, o caminho para lembrar-te de Deus. Pois esqueceste os teus irmãos com Ele e a Resposta de Deus para o teu esquecimento não é senão o caminho para a lembrança (T-12.II.2:9-12).
Portanto, meus pensamentos de ataque de separação realmente se tornam a forma de me levar de volta à lembrança da decisão na minha mente de negar a unicidade do Filho de Deus. Vendo esses pensamentos fora de mim, em outros – a culpa que eu projetei da minha mente em outros corpos -, eu agora posso vê-los em mim mesmo, dessa forma provendo outra chance de me lembrar de que, para usar as palavras de Donne, minha única segurança está em Deus, e não no especialismo; meu único recurso é a Voz de Deus, não a do ego. Através da reversão do Espírito Santo para a projeção do ego, sou capaz de reconhecer que o que vi em outro é a imagem externa do meu desejo: a imagem da separação e da culpa que eu quis que fossem verdadeiras (T-24.VII.8:10). Portanto, eu sou devolvido da insanidade dos interesses separados para a lembrança sã da minha unicidade compartilhada como o Filho único de Deus. Todas as diferenças percebidas agora desaparecem diante da luz resplandecente de Cristo, nosso verdadeiro Ser – nosso único Ser. A Lição 262, “Que eu não perceba diferenças hoje”, ora lindamente em nosso nome:
Pai, Tu tens um Filho. E, nesse dia, é para ele que eu quero olhar. Ele é a Tua única criação. Por que haveria eu de perceber mil formas naquilo que permanece uno? Por que haveria eu de dar mil nomes a ele quando um só nome é suficiente? Pois o Teu Filho tem que ter o Teu Nome, porque Tu o criaste. Que eu não o veja como um estranho para o seu Pai, nem para mim. Pois ele faz parte de mim e eu dele e nós somos parte de Ti Que és a nossa Fonte, eternamente unidos no Teu Amor, eternamente o Filho santo de Deus (LE-pII.262.1).
Somos nós que rezamos e, na verdade, somos nós que respondemos ao escolhermos a Resposta. Motivando nosso pedido e recebimento está o reconhecimento de que “deve existir uma forma melhor” de olhar para o mundo (T-2.III.3:5-6) e, ainda mais direto ao ponto, para as formas de percebermos uns aos outros. A “forma melhor” é a visão de Cristo, que abraça a Filiação como uma, sem excluir ninguém:
Entretanto, essa é uma visão que tens que compartilhar com todas as pessoas que vês, pois de outro modo, não a contemplarás. Dar essa dádiva é a forma de fazê-la tua. E Deus determinou, em benignidade amorosa, que ela fosse tua (T-31.VIII.8:7-11).
Com essa visão para nos guiar, nós caminhamos pelo mundo com uma nova compreensão que reconhece a universalidade do sofrimento e da paz, ambos presentes em nós, ambos presentes em todas as coisas vivas. E vê-los em um é vê-los em todos:
Se as pessoas se permitissem experienciar a dor dos outros, elas não seriam capazes de infligi-las: nem bombas, nem assassinatos, nem torturas, nem ataques de qualquer tipo.
Se as pessoas se permitissem lembrar de que o sino do julgamento, da mesma forma que o sino da morte de Donne, dobra por todos, e que sua culpa iria fazê-las pagarem o preço do seu ódio e vingança, da mesquinhez das suas projeções, haveria apenas paz e nenhum julgamento dos outros.
Se as pessoas reconhecessem que o ar, a água e a poluição nuclear simbolizam o fato de se importarem apenas com a satisfação da sua ganância, com a gritante negligência aos outros, e que esse egoísmo só as fere, elas iriam deixar de poluir em um instante.
Pois quem iria pilhar terras mineralmente ricas, arrancando em raiva justa – para emprestar a frase aliterativamente poderosa do texto (T-23.II.11:2) – tesouros que não são dele, se soubesse que era seu próprio tesouro de amor que estava perdendo?
Pois quem iria desejar escolher o sistema de pensamento assassino do especialismo, infligindo dor e sofrimento a outro, sabendo que era sua própria morte que estaria planejando?
Finalmente, qual governo iria desejar escolher o sistema de pensamento assassino do imperialismo, infligindo dor e sofrimento a outros, sabendo que eram suas próprias riquezas que estava pilhando?
A verdade dessas afirmações e respostas a essas questões são óbvias, uma vez que reconhecemos o valor dos interesses compartilhados, e a falta de valor dos separados. A resistência a esse reconhecimento, embora insana, é, apesar disso, inerente à nossa existência individual, na qual ter e ser são realmente separados, e precisam ser assim se formos sobreviver como entidades separadas. É nos lembretes que vêm dos John Donnes do nosso mundo que encontramos reforço para a escolha que irá finalmente nos trazer a segurança do amor do Céu e a paz da sua unicidade, alegremente aceitando o feliz fato de que estávamos errados e Deus certo. Parafraseando e acrescentando à questão do texto, podemos, portanto perguntar:
Quem, com o Amor de Deus sustentando-o, iria achar a escolha entre os milagres e o assassinato difícil de fazer? Especialmente se ele soubesse que o objeto da sua avidez era seu próprio ser, que foi por sua própria morte que o sino do egoísmo dobrou? (T-23.IV.9:8).
Entretanto, não apenas os mundos interno e externo da culpa, ódio e ganância permanecem um, assim também acontece com a paz, pois, como já vimos, nós igualmente compartilhamos a mesma mente errada e a mesma mente certa. No mundo do ser separado, não existem diferenças verdadeiras entre seus fragmentos aparentes, apesar de todas as evidências em contrário. O adorável poema de Helen Schucman gentilmente nos lembra:
A paz cobre você, a mesma fora e dentro,
em brilhante silêncio e em uma paz tão profunda
que nenhum sonho de pecado e mal pode chegar perto
da sua mente quieta.
(“Despertar em Quietude”, As Dádivas de Deus, p. 73)
O sonho do nosso ego é um de pecado e mal, primeiro vistos em nós mesmos e então, magicamente, parecendo surgir em outro, a quem nós rapidamente passamos a difamar, atacar e tentar destruir. Essa prestidigitação funcionou incrivelmente bem, porque tivemos sucesso em acreditar na mentira do mágico, de que somos criaturas separadas e independentes:
Tal é a estranha posição em que aqueles que vivem em um mundo habitado por corpos parecem estar. Cada corpo aparenta abrigar uma mente separada, um pensamento desconectado, vivendo solitário e de nenhuma forma ligado ao Pensamento pelo qual foi criado. Cada fragmento diminuto parece estar contido em si mesmo e precisar de outros para algumas coisas, mas sem ser de modo algum dependente do seu único Criador, já que necessita do todo para lhe dar. E nem tem qualquer vida à parte e por conta própria (T-18.VIII.5).
Para nos certificarmos, cada um de nós realmente é uma ilha, inteira em si mesma – se nós ouvirmos o ego. Mas, deixem-nos por um instante começarmos a questionar essa insanidade, e uma antiga porta que leva além do mundo de dor e morte se abre para a paz e a vida eternas (ET-ep.1:11). O Professor dos professores, nosso irmão mais velho, Jesus, gentilmente nos leva de volta da vida infernal de ilhas separadas para o Céu refletido da existência compartilhada e do propósito único. Junto com todos nós, ele ora para nossa Fonte, conforme nós juntos trilhamos nosso caminho para a luz da perfeita unicidade do amor:
Em alegres boas-vindas minha mão está estendida a todo irmão que queira unir-se a mim para alcançar o que está além da tentação, olhando com fixa determinação na direção da luz que brilha além em perfeita constância... E à medida em que cada um elege unir-se a mim, a canção de agradecimento da terra para o Céu cresce e os diminutos fios dispersos de melodia vêm a ser um único coro que abrange todo um mundo redimido do inferno, que dá graças a Ti... Pois nós alcançamos o lugar onde todos nós somos um e estamos em casa, onde Tu queres que estejamos (T-31.VIII.11:1-4, 7-11; 12:10-12).
(Volume 14, número 2, junho 2003) - Kenneth Wapnick, Ph.D. - Tradução: Eliane Ferreira de Oliveira
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