24 de novembro de 2008

O MERGULHADOR

O MERGULHADOR


Em nosso artigo anterior, na edição de junho do “The Lighthouse”, nós discutimos a resistência que os estudantes de Um Curso em Milagres inevitavelmente têm em relação não apenas a entender o que Jesus está ensinando, mas também em aplicar seus princípios de perdão às suas vidas diárias. No atual artigo, vamos explorar mais profundamente um aspecto dessa resistência: o medo – em um sentido pelo menos, justificado – de olhar para o sistema de pensamento do ego de culpa e ódio.

Friedrich Shiller, o grande poeta alemão, dramaturgo, e um homem de letras, escreveu uma balada em 1797 chamada “Der Taucher” (“O Mergulhador”) que, fora da Alemanha, é provavelmente mais conhecida na obra musical de Franz Schubert. É o conto trágico de um jovem nobre rural que aceita um desafio real, e sucessivamente mergulha até o fundo de um mar tempestuoso para recuperar um cálice de ouro que foi jogado lá pelo rei. Ele provoca o destino uma vez mais quando o cruel rei diz que ele poderá ter a mão da sua linda filha se repetir seu sucesso anterior. Infelizmente dessa vez, o jovem não retorna das profundezas. Antes de seu mergulho fatal do rochedo, entretanto, ele profeticamente diz o seguinte ao rei, falando da corrente tempestuosa da qual tinha acabado de escapar:

Lá embaixo é temível

E o homem não deveria tentar os deuses;

E nunca deveria desejar descobrir

O que eles misericordiosamente cobrem com a noite e o horror (1)


O trabalho de Schiller era uma fonte contínua de inspiração para os intelectuais alemães, embora ele seja mais lembrado hoje apenas por seu poema, “Ode a Alegria”, imortalizado por Beethoven em sua Nona Sinfonia. Entre aqueles inspirados por Schiller estava Sigmund Freud e C. G. Jung, o último especificamente observando que as quatro linhas acima refletem “o real significado desse vislumbre aos abismos da natureza humana” (2). É fácil encontrar um significado mais profundo nos versos de Schiller, e ver ali descritas as profundezas amedrontadoras da psique humana – é temível –, e então a quase igualmente amedrontadora defesa – noite e horror – que nos capacita a sobreviver, ainda que muito mal, no mundo.

Embora Freud tenha sido o primeiro psicólogo a expor totalmente os horrores da mente inconsciente do ego, ele certamente não foi o primeiro a ter feito essas observações. Entre muitos, muitos outros, podemos citar o poeta alemão romântico do século XVIII, Novalis, que disse: “Ficamos necessariamente aterrorizados quando damos uma rápida olhada nas profundezas da mente” (3). Na verdade, Freud estava apropriadamente aterrorizado com o que viu em sua auto-análise, assim como nas de seus pacientes, e descreveu o inconsciente com adjetivos como horrível, perverso, primitivo, selvagem, mau, repulsivo, monstruoso, perigoso e amedrontador, e com frases como um caldeirão cheio de excitações em ebulição, repleto de caos, demônios parcialmente domesticados, coisas estranhas e misteriosas, e maus espíritos.

Em Um Curso em Milagres, nós também vemos Jesus freqüentemente nos oferecendo um vislumbre da natureza do abismo que é o aterrorizante sistema de pensamento da mente do ego. Não é uma imagem bonita. A culpa é feia, horrorosa, refletindo o ato monstruosamente pecador que ela afirma realmente expressar – nada menos do que o assassinato de Deus e a crucificação do Seu Filho. Aqui estão dois exemplos que expressam o horror da maldade do ego e do assassino mundo de culpa. Que o leitor tenha cuidado; esse é um conteúdo forte:

Os mensageiros do medo são treinados através do terror e tremem quando o seu patrão os chama para servi-lo. Pois o medo não tem misericórdia nem mesmo para com os seus amigos. Seus culpados mensageiros saem às escondidas, em busca sedenta de culpa, pois são mantidos no frio e famintos e seu patrão, que só lhes permite festejar em cima do que devolvem a ele, faz com que sejam cruéis. Nenhum pequeno farrapo de culpa escapa de seus olhos famintos. E, em sua selvagem busca do pecado, lançam-se sobre qualquer coisa viva que vêem e carregam-na aos gritos a seu patrão para ser devorada... Eles te trarão notícias de ossos, pele e carne. Foram ensinados a buscar o que é corruptível e a retornar com as gargantas cheias de coisas decadentes e apodrecidas. Para eles, essas coisas são belas porque parecem aplacar seus selvagens acessos de fome. Pois eles são frenéticos com a dor do medo e querem evitar a punição daquele que os envia oferecendo-lhe aquilo que valorizam (T-19.IV-A.12:4-13; 13:2-8).

O ódio é específico. Tem que haver algo para ser atacado. Um inimigo tem que ser percebido de tal forma que possa ser tocado, visto e ouvido e, em ultima instancia, morto. Quando o ódio pára sobre alguma coisa, exige a morte... O medo é insaciável, consumindo todas as coisas que os seus olhos contemplam, vendo-se em tudo, compelido a voltar-se contra si mesmos e a destruir.Aquele que vê um irmão como um corpo, o vê como um símbolo do medo. E ele atacará, porque o que contempla é o seu próprio medo fora de si mesmo, pronto para atacar, mas pedindo aos gritos para se unir a ele novamente. Não te equivoques quanto à intensidade da raiva que o medo projetado tem que gerar. Irado, ele urra e arranha o ar na frenética esperança de poder alcançar aquele que o fez e devorá-lo (LE-pI.161.7:1-4,5-8; 8).

Esse mundo interno de horror é tão intolerável que requer uma defesa para nos proteger. E, então, o ego nos promete proteção desses urros amedrontadores, se apenas seguirmos seus conselhos enganosos e escaparmos para seu mundo inventado, o universo físico: o lar horrível dos corpos, relacionamentos especiais e morte. E, no entanto, esse mundo parece estar fora das nossas mentes culpadas e, portanto, nos identificarmos com ele traz a aparência do alívio e segurança do nosso pecado percebido. Em vários trechos, o Curso se refere a isso – o problema do ego e sua resposta – como dois sonhos, o sonho do mundo (o corpo) encobrindo o sonho secreto do ego (a mente) (e.g., T-27.VII.11:4-12:6). Emprestando as imagens de Schiller novamente, podemos dizer que o mundo externo de horror encobre o oceano interno apavorante de horror. Portanto, nos é oferecido um escudo duplo contra o que o ego não quer que realmente olhemos. Pois além desses dois mundos de horror, está o medo secreto do ego: que possamos reconhecer o Amor de Deus que é nossa verdadeira realidade e nosso verdadeiro Lar, refletido em nossas mentes divididas pelo Espírito Santo. No entanto, não podemos despertar para aquele Amor sem primeiro atravessarmos esses dois mundos de sonhos, como vemos nessa passagem do poema, As Dádivas de Deus, que claramente expressam o medo de olhar para o primeiro sonho:

Eles [os sonhos do mundo] contêm o sonhador amedrontado por algum tempo, e não o deixam lembrar do primeiro sonho [o sonho da mente de pecado, culpa e medo – o “lá embaixo é amedrontador”, de Shiller] cujas dádivas de medo só são oferecidas a ele novamente. O aparente consolo das dádivas das ilusões são agora sua armadura [a “cobertura de noite e horror” de Shiller], e ele segura a espada para se salvar do despertar. Pois antes de poder despertar, ele primeiro seria forçado a trazer à mente o primeiro sonho mais uma vez (As Dádivas de Deus, p. 120).

Por causa desse medo – totalmente inventado, embora desconhecido para nós – nós nos refugiamos no mundo físico de pseudo-problemas e pseudo-respostas, de vida-aparente e morte-aparente, e permanecemos ainda mais distantes da verdade que está enterrada em nossas mentes, debaixo dos dois sonhos. Portanto, essa corrente oculta que constitui o sonho secreto não é reconhecida, enquanto escolhemos não mergulhar. É uma lei psicológica imutável, entretanto, que o que permanece sem ser exposto no inconsciente, nos envenena por dentro, apenas para levantar sua feia cabeça em nossas vidas diárias. Nossos julgamentos contra nós mesmos, nossos “pecados secretos e ódios ocultos” (T-31.VIII.9:2), são projetados na forma de julgamento, condenação e necessidade de criticar e encontrar falhas – tudo isso é simplesmente o resultado inevitável de tal “proteção” da nossa falta de perdão:

O pensamento [que não perdoa] protege a projeção, apertando as suas correntes de modo que as distorções se tornem mais veladas e mais obscuras; menos acessíveis à duvida e mais afastadas da razão (LE-pII.1.2:3-6).

Como Jung observou, ao discutir as implicações trágicas de negar o inconsciente (ou a “sombra”):

O “homem sem uma sombra” é estatisticamente o tipo humano mais comum, um que imagina que ele realmente é apenas o que ele se importa em saber sobre si mesmo. Infelizmente, nem o chamado homem religioso nem o homem de pretensões científicas são exceções a essa regra. (4)

Nas palavras de “A Canção da Oração”, suplemento ao Um Curso em Milagres, a descrição de Jung reflete a dinâmica odiosa do perdão-para-destruir, na qual as pessoas conscientemente acreditam que estão sendo amorosas, misericordiosas e pacíficas, quando o que realmente estão fazendo é projetar seu ódio inconsciente no mundo. Infelizmente, a história das religiões do mundo e das nações – passada e presente – flui com sangue em nome de tais qualidades aparentes como amor, perdão e paz. Seria difícil subestimar as trágicas conseqüências (T-3.I.2:3) de tal negação, e o mundo dá testemunho de uma realidade dolorosa à sua eficácia. É, portanto, essencial que essa dinâmica seja compreendida para que o erro possa ser finalmente desfeito. Não fazer o trabalho interior do perdão, de pedir ajuda ao Espírito Santo para aceitar Sua correção em nossas mentes para nossos pensamentos errôneos, de aprender a aceitar a Expiação para nós mesmos, é o convite para o ego ocultar sua pseudo-realidade de pecado, culpa, medo e ódio por trás do manto da respeitabilidade – igualmente ilusória – da espiritualidade e religião. E o tempo todo em que estamos tão convictos de que a nossa posição é certa e justa, estamos ocultando o fervente caldeirão de ódio que jaz no oceano logo abaixo do limiar da nossa consciência.

Portanto, podemos ler Um Curso em Milagres como Jesus nos pedindo para sermos mergulhadores, significando que ele nos pede para segurar sua mão ao mergulharmos – ainda que gentil e cuidadosamente – no abismo do sistema de pensamento do nosso ego. Com seu amor ao nosso lado, nós expomos a aparentemente extensa corrente de pecado, culpa, medo e assassinato que misericordiosamente jaz logo ao lado da cobertura de noite e horror do mundo – a dor ostensiva de viver nesse mundo corporal de especialismo e ódio. E então, a única forma de podermos realmente responder à orientação do Espírito Santo é retraçando com Ele o curso louco até a insanidade, subindo a escada que a separação nos fez descer (T-18.I.8:3-5; T-28.III.1:2), depois de primeiro reconhecermos que estamos embaixo, e o que significa realmente estar embaixo. O processo do perdão, portanto, nos leva a examinar – sem julgamento – o mundo ensombrecido dos nossos relacionamentos especiais que são o espelho do mundo interno da sombra escura da culpa. É esse mundo dirigido pela culpa que então iríamos ver:

A aceitação da culpa na mente do Filho de Deus foi o começo da separação, assim como a aceitação da Expiação é o fim. O mundo que vês é o sistema delusório daqueles a quem a culpa enlouqueceu. Olha com cuidado para esse mundo e vais reconhecer que é assim. Pois esse mundo é o símbolo da punição e todas as leis que parecem governá-lo são as leis da morte. As crianças vêm ao mundo através da dor e na dor. Seu crescimento é acompanhado de sofrimento e elas aprendem sobre o pesar, a separação e a morte. Suas mentes parecem estar presas como numa armadilha em seus cérebros e seus poderes parecem declinar se os seus corpos são feridos. Elas parecem amar, no entanto, abandonam e são abandonadas. Parecem perder o que amam, exalam seu último suspiro e são depositados na terra e já não são mais. Nenhuma delas tem outro pensamento a não ser o de que Deus é cruel (T-13.In.2)

E, então, ao segurar a mão do Espírito Santo, como ele é, somos levados às profundezas do sistema de pensamento do ego – a defesa contra a correção do Espírito Santo – mas o ego (o símbolo do nosso medo) luta para preservar sua identidade. Um Curso em Milagres nos ensina que precisamos olhar para a escuridão que acreditamos estar dentro de nossas mentes, mas o ego nos diz em resposta que se fizermos isso, seremos, como as vítimas da Medusa, transformados em pedra e destruídos. Esse aspecto do arsenal defensivo do ego precisa ser visto pelo truque que é, caso contrário, teremos medo desse próximo passo, levando inevitavelmente à nossa escolha pelo perdão-para-destruir do ego – no qual, novamente, nós atacamos, mas chamamos isso de amor, perdão e paz -, ao invés do verdadeiro perdão oferecido a nós pelo Espírito Santo. Essas são só algumas poucas expressões das táticas do ego de induzir o medo:

À medida em que te aproximas do Começo, sentes o medo da destruição do teu sistema de pensamento sobre ti como se fosse o medo da morte (T-3.VII.5:13-15).

O ego, portanto, é particularmente capaz de atacar-te quando reages amorosamente, porque te avaliou como não sendo amoroso e tu estás indo contra o seu julgamento. O ego atacará os teus motivos logo que eles passem a estar claramente em desacordo com a sua percepção de ti. É aí que ele vai se deslocar abruptamente da suspeita para a perversidade (T-9.VII.4:9-15).

À medida em que a luz vem para mais perto, correrás para a escuridão encolhendo-te com medo da verdade, às vezes recuando para as formas menos intensas do medo e às vezes para o terror mais absoluto (T-18.III.2:1-5).

Em alto e bom som o ego te diz que não olhes para dentro, pois se o fizeres, os teus olhos tocarão o pecado e Deus te trespassará, cegando-te. Acreditas nisso, e assim não olhas... Em alto e bom tom, de fato, o ego reivindica que é, alto demais e com freqüência demais (T-21.IV.2:3-6,8-9).

No entanto, um sonho não pode escapar da sua fonte, que é sempre a mente do sonhador: onde o sonho começa e o único lugar onde verdadeiramente pode ser desfeito (T-27.VII.12:6). Olhando para dentro com Jesus, nós percebemos, agradecidos, que esse medo foi todo inventado: o ego não é essa massa turbilhonante de energia caótica e demoníaca, mas, como a feiticeira má em O Mágico de Oz, ele é simplesmente um amontoado insignificante e inofensivo de nada, que se dissolve na gentil presença da verdade. É a simples mudança da mente – voltando-se do ego para o Espírito Santo – que remove a “realidade” do sistema de pensamento do ego. Portanto, Jesus nos incita a olharmos para o conteúdo aparente do sonho secreto (T-17.IV.9:1), e nos conforta para que não fiquemos com medo do que apenas aparenta estar dentro:

Não temas, portanto, pois estarás olhando para a fonte do medo e estás começando a aprender que o medo não é real (T-11.V.2:4-6).

Não tenhas medo de olhar para dentro. O ego te diz que tudo é negro de culpa dentro de ti e pede que não olhes. Em vez disso, pede que olhes para os teus irmãos e vejas neles a culpa. No entanto, isso não podes fazer sem permaneceres cego. Pois aqueles que vêem os seus irmãos no escuro, e culpados no escuro no qual eles os amortalharam, estão por demais temerosos para olhar para a luz interior. Dentro de ti não está aquilo que acreditas que esteja e no qual depositas a tua fé. Dentro de ti está o sinal santo da fé perfeita que o teu Pai tem em ti... Podes ver a culpa onde Deus tem conhecimento da inocência perfeita? Podes negar o Seu conhecimento, mas não podes mudá-lo. Olha, então, para a luz que Ele colocou dentro de ti e aprende que o que temias que estivesse lá foi substituído pelo amor (T-13.IX.8:1-9,12-16).

E, então, quando nós finalmente mergulharmos em nossas mentes por mudarmos nossa percepção dos nossos relacionamentos, tendo o amor de Jesus como nosso guia e nossa segurança, nós percebemos, gratos, que realmente não havia nada lá – nada a temer, nada contra o que se defender. Apenas então nós realmente entendemos que o precioso cálice e a linda princesa são realmente nosso tesouro – procurado dentro da mente, não no mundo; para ser aceito, não vencido. E nós damos graças, pois “por tudo isso a nada renunciaste [renunciamos]!” (T-16.VI.11:5).

(Volume 10, número 3, setembro 1999) - Gloria Wapnick - Kenneth Wapnick, Ph.D. - Tradução: Eliane Ferreira de Oliveira

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NOTAS DE RODAPÉ
Schilller, edição alemã original: Aber da unten ist's fuerchterlich,/und der Mensch versuche die Goetter nicht,/und begehe nimmer und nimmer zu schauen,/was sie gnaedig bedecken mit Nacht und Grauen.
Tipos Psicológicos, Volume VI de The Collected Works (Princeton University Press, Princeton, NJ,1971), p. 96.
Citados em L.L. Whyte, O Inconsciente antes de Freud (Basic Books, New York, 1960), p. 121.
Sobre a Natureza da Psique, Volume VIII da The Collected Works (Princeton University Press, Priceton, NJ, 1969), p. 208.



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