20 de novembro de 2008

O PROCESSO DE DESPERTAR: OLHANDO PARA NOSSO ÓDIO

O PROCESSO DE DESPERTAR: OLHANDO PARA NOSSO ÓDIO

No passado, nós escrevemos nessas páginas sobre as expressões ostensivas de ódio que abundam em nosso mundo – tanto no mundo como um todo quanto no mundo mais pessoal dos nossos relacionamentos diários. É o avestruz em nós que iria fingir que a perversidade em nós é apenas uma aberração, enquanto escondemos nossas cabeças na areia dos óculos cor-de-rosa, que vêem apenas os frutos da negação, não os frutos do Espírito. Enquanto é certamente verdade que muitos caminhos espirituais enfatizam olhar apenas para o bem, baseados na presunção de que Deus criou o mundo e as pessoas nele, é certamente verdade que este não é o foco de Um Curso em Milagres. De forma bem clara, o Curso diverge daqueles caminhos espirituais que afirmam essa metafísica dualista, e afirma o oposto exato: Deus não criou o mundo, o corpo, ou forma de qualquer tipo. Ao invés disso, somos ensinados por Jesus em Um Curso em Milagres que o mundo é o sonho de medo do ego que nós escolhemos como um substituto ao Amor de Deus, e o milagre (ou perdão) é o meio pelo qual o despertar desse sonho é alcançado. Portanto, nós lemos:

… a base para o milagre... significa que compreendeste que sonhos são sonhos e que o escapar não depende do sonho, mas só do despertar... Os sonhos dos quais pensas gostar te atrasam tanto quanto aqueles nos quais o medo é visto. Pois cada sonho não é senão um sonho de medo, não importa que forma pareça tomar. O medo é visto dentro, for a, ou em ambos os lugares. Ou pode estar disfarçado em uma forma agradável. Mas nunca está ausente do sonho, pois o medo é a matéria prima dos sonhos, da qual todos são feitos (T-29.IV.1:3-5; 2:1-7).

Corretamente compreendidas, essas sentenças apontam que o propósito de Um Curso em Milagres não é nos ajudar a tornar os nossos sonhos – nossas vidas físicas aqui no mundo – um preenchimento das esperanças contidas dentro dos dramas e papéis individuais que estabelecemos para nós mesmos e os outros no sonho. Por exemplo, as pessoas que parecem conseguir o que querem – a forma agradável – vão atestar que suas experiências de vida são tremendamente satisfatórias. Conforme o julgamento do mundo, elas chegaram lá. Apesar disso, ainda é o caso de que “cada sonho é só um sonho de medo, não importando a forma que ele assuma”. Como Jesus nos diz no manual para professores, baseado na famosa afirmação de Freud sobre o artista:

Poder, fama, dinheiro, prazer físico; quem é o “herói” a quem todas essas coisas pertencem? Poderiam significar alguma coisa a não ser para um corpo? No entanto, um corpo não é capaz de avaliar. Ao buscar essas coisas, a mente se associa ao corpo, obscurecendo sua identidade e perdendo de vista o que realmente é (MP-13.2.6-11).

Isso é exatamente o que o sonho do mundo faz: seu propósito é primeiro fazer um corpo, e então, reforçar nossa identificação com ele, culminando em o corpo se tornar o “herói” do sonho, no qual cada necessidade – consciente e inconsciente – exige satisfação. Muitas vezes, as metas de poder, ou fama, ou dinheiro, ou prazer físico – individual e coletivamente – estão mascaradas em um manto religioso ou espiritual, ocultando sua real intenção. Portanto, elas parecem ser outra coisa além do que realmente são – ilusórias e enganosas, assim como o mundo dos sonhos. Para legitimar esses motivos ocultos – especialmente a natureza religiosa e espiritual dos papéis ilusórios que assumimos para nós mesmos -, Deus, Jesus, o Espírito Santo, ou algumas outras figuras santas são trazidas e citadas como falando conosco, confirmando nossa missão especial com a humanidade. Desnecessário dizer, missões especiais precisam de seguidores especiais, e, então, os buscadores são seduzidos e precisam ser convencidos da santidade inerente do seu líder ou professor especial. Toda essa atividade manipuladora e pseudo-espiritual é, portanto, usada para justificar as atitudes e comportamentos que na verdade não são nada além de fanfarronices do ego inconsciente, gritando em seus sonhos de desejos, como a seguinte passagem do texto explica:

Os sonhos são cenas temperamentais da percepção, nos quais literalmente gritas: “Quero que seja assim!”. E assim parece ser. E, no entanto, o sonho não pode fugir da sua origem. A raiva e o medo o perpassam e, em um instante, a ilusão de satisfação é invadida pela ilusão do terror. Pois os sonhos de que tens a capacidade de controlar a realidade substituindo-a por um mundo que preferes é aterrador. As tuas tentativas de obliterar a realidade são muito amedrontadoras, mas isso não estás disposto a aceitar. E assim as substituis pela fantasia de que é a realidade que é amedrontadora e não o que queres fazer dela. E desse modo a culpa se faz real.

Os sonhos te mostram que tens o poder de fazer o mundo conforme queres que ele seja e, porque o queres, tu o vês. E enquanto o vês, não duvidas de que ele seja real. Contudo, aqui está um mundo, é óbvio que ele está dentro da tua mente, mas aparenta estar do lado de fora. Não respondes a ele como se o tivesse feito e nem reconheces que as emoções que o sonho produz necessariamente vêm de ti. São as figuras no sonho e o que fazem que parecem fazer o sonho. Tu não reconheces que está fazendo com que representem para ti, pois se reconhecesses a culpa não seria delas e a ilusão de satisfação desapareceria (T-18.II.4; 5:1-10).


A verdade é que os seguidores de um guru ou um auto-intitulado líder ou professor espiritual – exemplos das figuras de sonhos afirmadas acima – freqüentemente pulam os duros passos que consistem do autêntico caminho espiritual de deixar o ego para trás. Existe com freqüência a esperança mágica de que simplesmente estar na presença do professor vá ser suficiente. Um corolário a essa distorção do caminho espiritual vem quando um professor ou estudante, guru ou seguidor, acredita que participando de sessões especiais, desempenhando rituais “sagrados”, ou aderindo a esquemas temporais “santos” vai, de certa forma, trazer o resultado desejado. O problema em todos esses exemplos é o nível de confusão entre a mente e o corpo. A santidade é um estado mental, e não tem nada a ver com o corpo, ou com o que o corpo faz ou deixa de fazer. O verdadeiro aspirante espiritual pode usar a aparência como um meio de expressar uma mudança na mente, mas nunca perde de vista onde o problema e a resposta repousam.

Estudantes de Um Curso em Milagres podem facilmente traçar sua ênfase em descobrir e desfazer o negativo até o trabalho pioneiro de Sigmund Freud, que já foi discutido em artigos anteriores. O problema nunca está em nossa santidade inerente como Filho de Deus, o Cristo eterno e sem forma, mas, ao invés disso, no fato de termos tomado a decisão de escolher contra essa santidade, produzindo o sonho da separação que levou à forma e às nossas identidades individuais. Essa defesa efetivamente mantém a santidade fora das nossas consciências, juntamente com todos os papéis de sonho que atribuímos a nós mesmos. Essa abordagem do ego repousa sobre fundações psicológicas muito sólidas: Se não estivermos conscientes da decisão da nossa mente de ser separada, inevitavelmente levando à culpa e ao ódio, então, a lei da mente dita que tal ódio reprimido seja projetado, mas sem a consciência de que isso foi feito (vejam, e.g., LE-pI.135.3-5).

Somos ensinados no Curso que “pessoas assustadas podem ser cruéis” (T-3.I.4:2), pois é um corolário para lei da mente que o medo não reconhecido – o cerne de todos os sonhos do mundo – leva a um ódio e crueldade projetados. Na verdade, a história do mundo e sua situação atual são uma testemunha gritante para essa verdade infortunada, quer estejamos falando das esferas política, social, econômica, cultural ou religiosa. E é espantoso que tão poucos reconheçam que a insanidade do ataque que leva ao assassinato – quer seja expresso de forma verbal ou comportamental – não pode de forma alguma ser justificada e defendida em campos humanitários, religiosos ou espirituais. Para compor esse erro, documentos espirituais antigos e contemporâneos, incluindo o próprio Um Curso em Milagres, são freqüentemente citados para apoiar esses ataques. No entanto, a natureza bizarra desses oximoros – como ‘ataque espiritual’ – escapa a muitos.

Nos primeiros séculos da chamada era cristã, muitos instrutores gnósticos e escritores afirmavam que a ignorância – não compreender a natureza e o propósito do mundo – era o problema central que precisava ser corrigido. Um a ser lembrado é a maravilhosa fórmula de Valentino:

O que liberta é o conhecimento de quem nós fomos, o que nos tornamos; onde estávamos, para onde fomos jogados; em que direção devemos nos apressar, do que somos redimidos; o que é o nascimento, e o que é o renascimento (citado em ‘O Amor não condena’, dedicatória).

Dois milênios depois, é triste relatar que o mesmo problema ainda está muito presente em nós, para emprestar uma frase evocativa de Wordsworth. Mesmo nossos grandes avanços tecnológicos em comunicação, como as vias rápidas de informação, podem servir para exacerbar o erro da ignorância, pois agora, distorções ignorantes e desinformações podem ser usadas para propagar de forma mais rápida e eficiente, tudo em nome do conhecimento e da liberdade, enquanto em muitos casos, os fatos e as verdadeiras intenções nunca são revelados ou discernidos.

Na seção “O medo da redenção” (e nós podemos substituir ‘redenção’ por ‘despertar’ aqui), Jesus afirma:

Podes perguntar a ti mesmo porque é tão crucial que olhes para o teu ódio e reconheças toda a sua extensão. Podes também pensar que seria bastante fácil para o Espírito Santo mostrá-lo a ti e dissipá-lo sem a necessidade de que o erguesses à tua consciência por ti mesmo (T-13.III.1:1-5).

É uma parte inerente ao ensinamento do Curso que o inconsciente da mente errada precisa ser trazido à consciência. Uma vez conscientes, podemos então tentar fazer a escolha para justificar ou racionalizar o ódio, dessa forma mantendo o ego intacto, ou de pedir a Jesus ou ao Espírito Santo para nos ajudar a liberar esse ódio, por percebermos a dor de nos manter no sonho de nos agarrarmos aos efeitos do ódio. É por isso que Jesus enfatiza que nós “não estamos seriamente perturbados por (tua) nossa hostilidade” (T-13.III.1:7). Na verdade, nosso ódio nos traz o prazer defensivo de sabermos que outra pessoa é culpada, não nós mesmos. No entanto, podemos ver essa perversa dinâmica em funcionamento em muitos grupos e movimentos espirituais – passados e contemporâneos -, onde os membros se deleitam em encontrar pessoas – reais ou imaginárias – para atacar, julgar, condenar e odiar de forma “justificável”, e algumas vezes até punir.

Nunca é demais enfatizar que liberar esse ódio, o primeiro passo no processo da cura, não é possível a menos que primeiro estejamos conscientes dele. Como Jesus disse a Helen Schucman e a William Thetford em uma mensagem pessoal a eles, no final do primeiro ano da escrita do Curso feita por Helen:

Vocês não percebem o quanto odeiam um ao outro. Vocês não vão se liberar disso até ficarem conscientes do que está acontecendo, pois, até então, vão pensar que querem se livrar um do outro e manter o ódio... Olhem o mais calmamente possível para o ódio, pois, se vamos negar a negação da verdade [uma referência à T-12.II.1:5], precisamos primeiro reconhecer o que estamos negando... Certamente, vocês gostariam de olhar para o que não querem sem medo, ainda que isso os amedronte, se dessa forma puderem ficar livre dele?... Não tenham medo dessa jornada ao medo, pois esse não é o seu destino. E nós vamos caminhar através dele em segurança, pois a paz não está distante, e vocês serão deixados em sua luz (Ausência de Felicidade, 2ª.ed., p. 297-98).

Essas afirmações que Jesus fez, através de Helen, a ela e a Bill sobre seu relacionamento esclarece o quanto é importante olhar para o ódio do nosso ego, o que parece ser uma jornada ao medo, mas é realmente uma jornada de despertar para o amor que é nosso verdadeiro estado. Por causa da dinâmica da negação, nós simplesmente não estamos conscientes da natureza tóxica do nosso ódio, um veneno que infecta nossas mentes e reforça as ilusões de sermos injustamente tratados, uma má compreensão, novamente, que usamos para justificar nosso ódio e ataques aos outros.

E, então, o processo de despertar – também conhecido como perdão – pode ser resumido dessa forma:

Nós primeiro precisar estar sempre vigilantes contra os sinais dos pensamentos de ódio do nosso ego, especialmente quando estão mascarados de forma religiosa, espiritual ou idealística, seja ele oral, escrito ou comportamental. Os sinais são legião, uma vez que estejamos dispostos a olhar. Ataque, julgamento, condenação, ciúmes, inveja e até humor sarcástico são geralmente ótimos sinais de aviso de que já fizemos a escolha pelo professor interno errado.

Agora que estamos conscientes de que o problema não é o que ou quem nós julgamos ou invejamos, mas, ao invés disso, o fato de que escolhemos julgar, podemos legitimamente pedir ajuda a Jesus ou ao Espírito Santo para descobrir dentro de nós a fonte dos nossos pensamentos de ataque. E, então, torna-se claro que nossa raiva é uma projeção dos nossos “pecados secretos e ódios ocultos” (T-31.VIII.9:2) que nós tentamos ocultar de nós mesmos. Enquanto um julgamento de outra pessoa puder ser justificado – e fazer com que outros concordem conosco é uma das táticas favoritas do ego para reforçar a negação -, então, nunca temos que olhar para ele. Como Jesus explica em “Os papéis nos sonhos”:

Quando estás com raiva, não é porque alguém falhou em cumprir a função que tu lhe atribuíste? E isso não vem a ser a “razão” pela qual o teu ataque é justificado? Os sonhos dos quais pensas que gostas são aqueles nos quais as funções que atribuíste foram cumpridas, as necessidades que estabeleceste para ti foram preenchidas. Não importa se são preenchidas ou simplesmente se tu as queres. É da idéia que elas existem que o medo surge. Os sonhos não são mais ou menos queridos. Ou são desejados ou não o são. E cada um representa alguma função que atribuíste, alguma meta que um evento, um corpo ou alguma coisa deveria representar e deveria conseguir para ti. Se isso tem sucesso, pensas que gostas do sonho. Se falha, pensas que o sonho é triste. Mas o fato de ser bem-sucedido ou de falhar não é o seu núcleo, mas apenas a fina embalagem (T-29.IV.4).

Finalmente, podemos reconhecer que esse tem sido nosso sonho de ódio, e um que não mais queremos manter. Com a nossa escolha errada corrigida e desfeita finalmente, nossos olhos começam a se abrir, conforme despertamos do mundo de pesadelo de medo e ódio, para o mundo glorioso que o perdão revela, levando à totalidade da pura Unicidade e do Amor.


(Volume 11, número 1, março 2000) - Gloria Wapnick - Kenneth Wapnick, Ph.D. - Tradução: Eliane Ferreira de Oliveira

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