23 de agosto de 2007

Do avesso e de cabeça para baixo...

“O trabalho dos olhos está feito,
agora
Vá e faça o trabalho do coração”.
-Ranier Maria Rilke-


A artista americana Bev Doolittle desenvolveu um estilo único de pintura que ela chama de sua “técnica de camuflagem”. Nesse processo, ela se sente livre para romper todas as regras-padrão de composição artística. Por exemplo, em Woodland Encounter, ela colocou uma raposa de cor forte diretamente no centro do fundo. Até um neófito do mundo da arte sabe que jamais se deve centralizar qualquer coisa numa pintura e que a atenção sempre deveria ser atraída primeiro para o plano frontal, depois para o plano médio e finalmente para o fundo.

Ao virar as regras do avesso, Doolittle distrai astutamente o espectador de maneira que ele não veja os acontecimentos mais importantes e interessantes – índios montados em pôneis esgueirando-se furtivamente pelas florestas silenciosas – camuflados no plano frontal de sua paisagem circundada de neve. O resultado é que o espectador ganha a deliciosa experiência de descobrir aquilo que está escondido no meio do óbvio.

Através de muitos anos de observação silenciosa da natureza e de aprender como “ouvir com os olhos”, Doolittler descobriu um dos maiores segredos da vida: as coisas óbvias são distrações que nos embalam a acreditar que a realidade está apenas no mundo físico e, portanto, só pode ser vivenciada por meio dos cinco sentidos. Se Doolittle não tivesse levantado a possibilidade de existir outra dimensão da realidade escondida sob a superfície, tanto ela quanto o mundo estariam privados do dom vivificante de suas pinturas.

A tentação que surge ao ouvir uma história de triunfo igual à de Doolittle é considera-la uma dessas pessoas especiais que foi agraciada com um grande destino. Embora ela seja especial e agraciada, seria um erro considera-la mais especial e mais agraciada do que qualquer outra pessoa. Todos receberam um grande destino e o destino de cada indivíduo é único. Enquanto não tivermos coragem suficiente para começar a fazer perguntas e procurar a verdade que está camuflada nas muitas vivências e armadilhas de nossa vida, nosso destino permanecerá escondido para nós. Mesmo se ouvirmos entusiasmados as histórias de outras pessoas, continuaremos inconscientes do fato de que a nossa própria história permanece não escrita.

Nossa história pessoal de benção, grandeza e destino jamais terá um começo enquanto não estivermos à vontade com perguntas em aberto. A grande dificuldade é que elas não têm respostas e estão mudando constantemente. Essas perguntas se inovam tão rapidamente quanto à pessoa que pergunta.

Aqui se encontra tanto a benção quanto a maldição. Pois perguntas como essas são sagradas e não têm respostas. Fomos treinados desde a infância a acreditar que as perguntas, embora importantes, eram apenas meios para um fim. É que sempre o objetivo final era possuir a resposta – onde colocamos a nossa fé e sobre as quais construímos a nossa vida.

Sempre que colocamos nossa fé e construímos nossa vida sobre respostas rígidas em vez de perguntas flexíveis, podemos ter certeza de que, mais cedo ou mais tarde, desperdiçaremos uma boa porção de nossa energia vital defendendo essas respostas. Mas, como as respostas rígidas criam a ilusão de segurança e de vida, fechamos os olhos e apertamos nossas respostas em volta de nós como uma capa de chuva numa noite escura de tempestade.

Então, assim como é raro notar a luz faiscante de uma libélula durante o dia, é raro que as pessoas reconheçam a luz tremulante das Perguntas Sagradas quando a vida está cheia de céu azul e luz do sol. Na vida de cada um, porém, nuvens de tempestade e escuridão descerão inevitavelmente como um véu gigantesco, ocultando o mundo cheio de luz ao qual nem demos atenção.

O momento em que nossa vida é varrida pelos ventos da mudança que a viram do avesso e de cabeça para baixo é, normalmente, o momento em que a verdadeira história de nossa vida – daquela pessoa que fomos criados para ser – começa a ser escrita. Optam-se por seguir a luz tremulante do sagrado – e isto é sempre uma escolha, mesmo se for uma escolha nascida do desespero -,
descobrimos que nossa vida nunca foi aquilo que parecia ser.

Quando aprendemos a ouvir com os olhos, ver com o coração e falar sem palavras, camadas e camadas de ilusão secam e desaparecem. Finalmente, em pé sobre a Grande Ponte de nossa alma, iremos descobrir o mundo do mistério, da beleza, do símbolo e da história, um mundo onde as feridas são dons, onde a escuridão é dissipada pela luz do entendimento e onde aquilo que é verdade é reconhecível só porque está sempre mudando.

Texto do livro: Meu Eu Melhor > usando o Eneagrama para liberar o poder do eu interior – Ed. Mercuryo.

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