18 de agosto de 2007

Primeiro Quadro > A BUSCA DO BOI

I CHING

Para mim o I Ching é um dos grandes caminhos de autoconhecimento, no sentido de esclarecimento confiável e lúcido. Muito importante nos vermos em nossa natureza dual, o homem superior e inferior dentro de nós, até para podermos compreender a urgência do
DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA SUPERIOR.

Estes são os hexagramas relacionados ao desenvolvimento do caráter, e sua intenção é atingir as pessoas sérias que procuram um guia para o desenvolvimento da consciência superior.

Os 10 quadros do Pastoreio do boi da tradição zen-budista nos relatam de forma poética como a consciência do peregrino sofre e se transforma até se aperceber do estado de Buda que existe nele mesmo. Tentem acompanhar estas analogias.

Será dado ênfase aos processos de meditação (reflexão) e autoconhecimento
Em nenhum momento se afirma que o Livro das Mutações foi escrito para saber a “sorte” como comumente é entendida. Ao contrário, sempre se deixa manifesta a “Vontade dos Homens Sábios” (eus em nós voltados à sabedoria) que continuamente meditavam para que os homens inferiores (eus medrosos, inseguros, raivosos, etc...) pudessem seguir uma Via ou Tao da conduta superior.

Em nenhum lugar está escrito que o I Ching foi idealizado para saber alguma atividade que qualquer ser humano comum, usando um mínimo de sua inteligência, não saiba resolver. Ao contrário, o mais importante é o destaque contínuo que se faz sobre a espiritualidade deste livro.

Estes hexagramas estão intimamente associados a uma experiência transformadora de nosso caráter, assim como da nossa visão do mundo que nos rodeia.

Essas experiências transformadoras seguem uma linha de ação, a saber: Todo ser humano procura bem-estar físico, comodidades, segurança de toda espécie, muitas vezes de forma egoísta, sem lhe importar o sofrimento que isto possa causar às outras pessoas que o acompanham e mais ainda a si mesmo;

Depois, este mesmo ser humano acaba por sofre as conseqüências de seus atos e o sofrimento experimentado faz com que alguns procurem um caminho superior de autoconhecimento. Estes textos estão dirigidos especialmente a eles.

Sendo, portanto o I Ching a VIA DOS HOMENS SÁBIOS, nada melhor do que incluir uma análise dos DEZ QUADROS DO PASTOREIO DO BOI da tradição zen-budista e sua relação com estes hexagramas, porque eles refletem uma crise profunda, não só do caráter mas, de toda estrutura do Ser no seu processo de auto-realização.

Primeiro Quadro

A BUSCA DO BOI
(Hexagrama 24 – Fu – Retorno às antigas condições)

Diz o poema:
“O Touro nunca se perdeu; de que serve procurá-lo?”

Comentário:
A natureza essencial, o Buda, a iluminação nunca se perdeu; por que procura-la? Ela é inerente e inseparável da própria natureza humana.

Di
z o poema:
“O fato de que o pastor não se encontre bem consigo mesmo se deve a que ele mesmo violou sua natureza mais profunda.”

Comentário:

No Hexagrama 23, Po, Jogar fora (anterior, não postado aqui), ele “violou” ( homem) sua própria natureza original, sendo demonstrado isto pela expulsão das linhas Yang, ou espirituais do hexagrama. Agora, no hexagrama 24, ele torna-se vítima das próprias ilusões, representadas pelo peso das linhas Yin (as negatividades), sufocando a única linha Yang, representando o impulso até inconsciente de buscar o espiritual dentro de si mesmo, por isso diz o poema:

“O touro se perdeu porque o pastor se afastou do caminho, seguindo seus enganosos sentidos. Seu lar cada vez fica mais longe dele, desvios e encruzilhadas se confundem mutuamente.

O desejo de ganância e o temor à perda ardem como fogo; as idéias sobre o reto e o equivocado brotam como aranhas. Somente no ermo, perdido no bosque, o garoto procura e procura!

As águas em borbulhas, as montanhas distantes e o caminho sem fim. Exausto e desesperado não sabe aonde se dirigir. Somente escuta as cigarras que cantam na tarde nos bosques de pinheiros.”

***
Comentário:

Seguir os enganosos sentidos é tomar as sensações, que eles nos fazem perceber, como reais. Neste caso ‘seu lar” é a própria natureza búdica ou original. À medida que nos vamos enfronhando num mundo sensorial a nossa mente se torna mais complexa e mais difícil de satisfazer. Quando éramos crianças, satisfazíamo-nos com poucas coisas, porém, à medida que nossa mente foi descobrindo o que os sentidos lhe mostravam, ela tornou-se complicada, sofisticada, procurando incessantemente, embrutecendo-se cada vez mais e mais.

Os desvios e as encruzilhadas são os ideais passageiros que hoje nos fazem lutar contra aqueles que, no dia de ontem, foram nossos amigos. Ontem éramos de direita, hoje de esquerda, amanhã seremos hippies, depois conservadores. Ontem queríamos atingir o céu com nossas mãos, hoje estamos perdidos num inferno desastroso da inútil rotina. Tudo isto sustentado pelo desejo insaciável de cada dia ter “algo diferente”; ganhamos e ao mesmo tempo somos infelizes porque sabemos que vamos perder.

Sabemos que não necessitamos muito para viver, porém, não sabemos viver de forma simples e alegre. Ontem meditávamos sobre verdades, hoje a descrença é total. Sabemos que erramos e tentamos nos convencer de que esse erro é a verdade; ao anoitecer, esses fantasmas, essas aranhas brotam e nos perturbam, nos fazem perder o sono, nos tornam taciturnos, tristes, melancólicos. Perdidos no bosque da paixão, queremos nos atordoar a cada dia que passa para não olharmos de frente o quão medíocres somos. E, dentro deste quadro, desesperados, vagamos sem rumo fixo. Esperando o momento em que a morte acabará com esta triste tragicomédia que é nossa vida.

É então que, ao compreender esta nossa futilidade, inicia-se em nosso íntimo uma pequena revolução, uma energia nova que nos incita a procurar novamente. Este início está retratado no:

RETORNO ÀS ANTIGAS CONDIÇÕES
Hexagrama 24 – Fu

COMENTÁRIO AO ESPÍRITO DO HEXAGRAMA


Representa o início modesto e silencioso, que se manifesta em nossa consciência como uma tendência nova, completamente inusitada, que aos poucos irá modificando nosso caráter sem que o indivíduo em questão possa entender muito bem o que realmente está acontecendo com sua vida, Porém, é importante saber que já não será a mesma pessoa. As linhas quebradas representam no seu conjunto as inúmeras tendências que lhe impediram, num princípio, manifestar perante seus achegados o que verdadeiramente pensa com relação à própria vida.

Entretanto, sente no fundo de seu coração uma necessidade imperiosa de se modificar radicalmente. Tendo presente esse evento na vida da pessoa, Fu se transforma no primeiro toque da Alma, fato que o cérebro registra conscientemente como um PROFUNDO SENSO DO INCÔMODO. Ora, na realidade ninguém pode se modificar, sequer um pouquinho, se não se sentir profundamente incomodado com a vida que leva.
Quem gosta de viver como vive, não se importando com a miséria física, moral e mental dos seres que o rodeiam, então para que procurar algum caminho espiritual?

Difícil concluir que deve mudar o ritmo de sua vida para atingir algum outro estágio de consciência. Dizem que o inferno existe realmente para aqueles que não acreditam que o Céu exista, e basicamente é isso. Porém, existe “o momento” para todos e quando esse tempo chega, a vida comum perde seu “brilho”, já nada mais o atrai, experimentando assim o impulso incontrolável por estudar ou, ao menos, escutar palavras que o inspirem a trilhar a senda dos antigos. Sua vida, até agora sem sentido, gerou hábitos poderosos que se transformaram em seus próprios carcereiros, sendo estes hábitos que o levam a exclamar, ou que não tem tempo, ou que se conforma com a vida medíocre que leva, ou que ser um ser humano comum é o melhor que há etc. Ele percebe que a vida vai embora, que a velhice chega cedo, e que, quando tentar se arrepender, já não terá as forças necessárias para lograr a autotransformação. Nesta dicotomia do ser, às vezes nega seu passado. Imediatamente quer incluir novos horizontes, o novo o atrai, o velho o desgosta, o hábito o aprisiona, a vontade da liberdade o angustia e nesse processo passa seus dias solitário, perdido nas suas ilusões.

Por isso esse hexagrama significa o COMEÇO HUMILDE.

É sempre assim; aquele que quer compreender os mistérios do Universo sem antes compreender um pouquinho a si mesmo e ao seu irmão está fadado ao fracasso. O êxito, porém, está assegurado, porque a linha Yang que é traduzida como energia espiritual já está se fazendo sentir, e é difícil que, a partir deste momento, o indivíduo possa mudar seu destino.

Junto com o incomodo acontece uma outra experiência marcante na vida do indivíduo, algo que até então não acontecia, parece ser como que seus olhos se abrem para uma nova realidade, onde surgem as dúvidas e os conflitos de toda ordem e então aparece um grande problema, desta vez bem real: A CONTRADIÇÃO. De acordo com as experiências místicas dos grandes mestres, sejam eles cristãos ou budistas, a contradição sempre nos acompanha, assim como por exemplo com São Paulo, quando ele afirmava que o que seu coração queria não era o que sua carne queria. Essa dualidade interior deixa o ser humano em questão completamente estressado, sem vitalidade, profundamente nervoso; tira-lhe a fome, submete seu sistema nervoso a modificações profundas e, justamente por intermédio dessa guerra interna, o ser humano consegue consolidar pouco a pouco a sua transmutação.

Seria ridículo dizer que uma real descoberta nunca é antecedida pela profunda angústia, que está presente em Fu. Por isso é que se pede ao próprio aluno que neste momento de sua vida se recolha em silêncio, que não fale de si próprio, que não tente explicar, porque na realidade, por mais que queira, será difícil que ele expresse com “clareza” a “confusão” interna pela qual está passando.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O JULGAMENTO

Em termos de mente contemplativa, a essência da iluminação é chamada o coração do Céu e da Terra; as linhas quebradas neste caso representam o mal que nos assola a cada instante. Ainda que existam criminosos do mais alto calibre, eles na sua maldade não podem destruir essa essência que existe no coração de todos os seres; porém, quanto mais tempo essa essência esteja coberta pela ignorância, maior será o trabalho para reconquistar a natureza pura de Buda. O oceano de sofrimento (caracterizado pelas linhas yin) é ilimitado, porém, a linha Yang é a representação da costa da iluminação. Neste caso, um simples pensamento, um momento de inspiração, uma vontade desesperada de se libertar do sofrimento e das limitações, podem mover o infinito oceano do Sansara. Por este motivo, os mestres se interessam por aqueles que estão desencantados com a vida comum que a maioria de todos os seres humanos leva; neste caso, as limitações são tantas, o peso é tão profundo que o indivíduo não encontra paz e repouso. Neste momento, se o discípulo puder suscitar dentro dele um pensamento de elevação, seu êxito estará assegurado e em nenhum momento de sua vida se esquecerá desta experiência.

IMAGEM

Em termos de mente contemplativa, mesmo pensando que há impulso no crescimento e na força, é benéfico ter um lugar para ir, é benéfico termos uma direção e um objetivo porque a consciência do que se tem de fazer será o motor que vai dirigir nossas forças para esse fim específico. Na maioria dos caos, no início do caminho de retorno, o aspirante se perde em vãs conjecturas e sonhos de grandeza, torna-se lírico, ou seja, produz realmente pouco na vida diária, a sua transformação na maioria das vezes é obstaculizada pelas fantasias e ilusões. De qualquer forma, é necessário nutrir o potencial com serenidade. Assim, por intermédio das práticas contemplativas, os “reis antigos” despertavam para o “solstício de inverno”. Esse “despertar” é uma alusão ao que acontece com a vida mundana do discípulo. O solstício de inverno é a morte de tudo o que é seguro. Fu, na realidade, é o INÍCIO DO FIM DO PERÍODO DA MORTE, seja ela espiritual ou natural (como no caso do inverno). O inverso é caracterizado como a estação onde a vida se esconde, onde tudo morre para novamente germinar na primavera; neste caso, o despertar para o solstício de inverno é penetrar no mundo da morte e encontrar a própria vida. Em termos zen-budistas poderíamos relacionar com a morte que cada participante do zen experimenta quando se senta em frente ao muro. Nesse preciso momento de enterrar a semente. Essa vida latente estará durante todo o inverno aprisionada na escuridão e no silêncio; despertar para o solstício de inverno é a semente acordando de seu sono letárgico. É matar a própria morte.

“Fechar os portões” está relacionado com os sentidos. Agora, a sua consciência já não é dirigida ao exterior e quando no I Ching se fala de comerciantes e forasteiros que não transitam, está relacionado com todas as impressões captadas pelos sentidos quando eles são dirigidos às atividades conscientes. Através deste processo se domina a si mesmo e temporariamente separa as caravanas (múltiplos eus, pensamentos) das impressões mentais, apenas observando a mente sem “inspecionar as regiões” ou “sem viajar pelas províncias” dos elementos físicos e mentais, ou seja, sem estar atento a suas reações internas ou externas.

***

Observação: a tradução dos poemas foi realizada por Roque E. Severino. Todos os poemas foram extraídos da obra de D.T. Suzuki, Manual de Zen-Budismo.
O texto foi adaptado por mim (Lena) do livro: I CHING – Uma abordagem Psicológica & Espiritual do I Ching – Autor: Roque E. Severino - Edit. Ícone.

* Veja no próximo link >
Segundo Quadro: ENCONTRANDO AS PEGADAS.

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